sexta-feira, abril 13, 2007

134 - Cidades desejadas e seguras (I): o problema da habitação tornou-se o problema da cidade – artigo de António Baptista Coelho - Infohabitar 134

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( palavras chave: cidade, segurança urbana, urbanismo, cidade habitada, fazer cidade com habitação, arquitectura cívica, humanização, vitalização, periferia, bairros inseguros, bairros perigosos)


Cidades desejadas e seguras (I):

o problema da habitação tornou-se o problema da cidade

António Baptista Coelho

O subtítulo deste artigo é uma frase do Arq.º Luis Fernández-Galiano, retirada de um dos seus excelentes editoriais na revista espanhola “Arquitectura Viva” (n.º 97), expressivamente intitulado, “Habitação sem cidade” (“Vivienda sin ciudad”). Foi aí que ele sintetizou, e muito bem, que “ o problema da habitação se tornou o problema da cidade.”

Fernández-Galiano explicou esta ideia, ao referir que ”durante o século XX, a transformação urbana provocada pela mecanização da agricultura e os fluxos migratórios do campo para a cidade provocaram o chamado «problema da habitação»... No princípio do século XXI, e no contexto do mundo desenvolvido, o alojamento não é já uma preocupação quantitativa ou sanitária, mas sim qualitativa e ambiental: garantidas as dimensões mínimas, a ventilação eficaz e a saudável insolação, a habitação contemporânea padece de mediocridade visual, programas rotineiros e envolventes anorécticas.”



E concluiu salientando que. “A habitação não é hoje um problema que precise de experimentações estéticas ou inovações estilísticas; é um problema urbano, da civitas ou da polis, o que quer dizer, um problema de cidadania e político. Precisamos de mais arquitectura; mas, acima de tudo, precisamos de mais cidade.”



Fig. 01

Aponta-se que o presente texto teve como motivação, mais directa, um excelente artigo saído em 7 de Abril de 2007, no semanário Expresso, sobre as condições de insegurança urbana num número significativo de “bairros sociais” e de outros bairros citadinos ou periféricos na Área Metropolitana de Lisboa; o artigo é de Valentina Marcelino e Jorge Simão e intitula-se “Alto risco na zona oriental - Número de bairros violentos sobe 50%”, e logo em destaque o artigo salienta: “Autoridades evitam a força face ao aumento do crime violento. Preferem estudar os bairros e criar vínculos”.

Importa referir, desde já, que a ideia que baseou o presente texto foi desenvolver, a partir de algumas ideias presentes naquele artigo, uma aproximação muito global e eficazmente informal aos aspectos de segurança e insegurança urbana. No entanto há que confessar que, à medida da elaboração foi este mesmo texto “fugindo” das matérias mais específicas da segurança urbana, às quais havemos de voltar em breve e de forma atenta e o mais possível completa, para uma perspectiva que encara a cidade como sítio que desejavelmente proporciona o espaço mais adequado e mais naturalmente protector das actividades humanas e designadamente daquelas que mais exigem em termos de adequadas condições de exercício; como será a possibilidade da fácil escolha entre o convívio e a privacidade e entre a animação e o sossego.

E diria mesmo que é este livre e agradável arbítrio, caldeado com a riqueza cultural, a diversidade da imagem urbana e a existência de empatia entre espaços urbanos habitados e os seus habitantes, que constituem um conjunto de condições de vida diária fortemente propiciadas por partes de cidades naturalmente seguras, porque agradavelmente envolventes, conviviais, vivas e apropriadas.



Fig. 02

Não é, no entanto, possível deixar de sublinhar, que, infelizmente, em Portugal, os aspectos quantitativos associáveis à qualidade do habitar e à qualidade da cidade não estão ainda resolvidos, seja porque os velhos problemas, como os “bairros de barracas” ainda persistem pontualmente, seja porque outros problemas estão aí bem presentes; alguns deles velhos, como a sobre-ocupação e a vetustez de partes do parque habitacional e outros novos e associados, por exemplo, seja à imigração, seja à “nova” pobreza urbana, que tem muitas facetas, mas onde se salientam os sem-abrigo. E como se verá, ainda que sinteticamente, muitos destes aspectos têm ligações fortes com as questões da cidade bem, ou mal, habitada, bem, ou mal, desenhada.

E talvez que a questão fundamental da cidade de hoje esteja aqui nestas questões do melhor ou pior habitar, portanto da maior ou menor vitalidade urbana – e atente-se que se fala de vida urbana não de bairros-dormitório –, e do melhor ou pior desenho do habitar – e sublinha-se que aqui desenho se refere à concepção arquitectónica num sentido verdadeiro, portanto amplo e bem fundamentado.

Um outro aspecto a ter em conta como base de todas estas reflexões é a questão de para quem se faz cidade e habitação. Uma questão que parece evidente, mas que perde essa evidência quando visitamos conjuntos ditos residenciais onde o automóvel é rei e onde, por vezes, existe um quase total divórcio entre o interior do conjunto e a sua envolvente “dita” urbana. São questões fundamentais estas e que devem ter resposta, pois assim como não se fazem habitações com as características de arquivos e arrumações industriais, porque aí vivem pessoas, com as suas necessidades e os seus hábitos; também o espaço público não pode ser feito para o veículo e para a simples passagem de infraestruturas, tem de ser feito com, pelo menos, dois objectivos fundamentais:

(i) O espaço público tem de ser feito para a pessoa a pé, para a pessoa a pé que precisa de ser devidamente apoiada em termos funcionais, acompanhada e motivada em termos urbanos, estrategicamente abrigada do sol a mais e da chuva, estrategicamente relacionada com as outras pessoas e com as actividades urbanas, e estrategicamente orientada e dotada de condições de visibilidade de segurança e de auto-controlo espacial – e atenção que o perfil do cidadão tem de ser pensado e realizado à escala da criança e do velho; caso contrário para quem é que se está a fazer cidade?



Fig. 03

(ii) E o espaço público tem também de ser feito para a cidade, para a cidade como construção comum e representativa da nossa cultura e aqui se irá exigir mais, mais desenho, mais qualidade, mais trabalho, mais imaginação, mais cuidado, pois a cidade é memória e será memória e ninguém pode viver sem memória ou com uma memória corrompida ou deturpada.



Fig. 04

Dito isto, afirma-se que construir um espaço público como esse, um espaço de vivência de uma cidade que seja como que uma grande casa, da qual gradualmente vamos conhecendo os mais pequenos recantos e os aspectos mais sugestivos e os pormenores mais subtis e marcantes, uma grande casa feita para uma grande diversidade de habitantes e de usos, é uma construção que exige uma elevada qualidade de concepção; e tal como referiu Charles Moore, em um dos seus textos, estamos ainda a procurar garantir a esta escala urbana habitada a qualidade que já atingimos no edifício isolado.; são, realmente, em muito maior número os “grandes” edifícios do que os “grandes” conjuntos urbanos, e são estes os grandes protagonistas da cena urbana, não tenhamos dúvidas.

Mas dá vontade de dizer e mesmo de repetir e de sublinhar que uma tal procura da qualidade à escala urbana habitada tem de começar a chegar, obrigatoriamente, hoje em dia, e de forma sistemática, a resultados claramente positivos, pois não é mais possível continuar a destruir tanto do que outrora foi bem feito e a construir tanto e tão mal feito, e designadamente a esta fundamental escala urbana vitalizadora de relações coesas de proximidade e de relações estruturantes de uma cidade viva.

Para tal é muito urgente e necessário que a arquitectura seja feita por arquitectos, mas tal condição não chega para o referido objectivo; há que exigir, também aos arquitectos, que a qualidade da sua arquitectura tenha verdadeira valia urbana e humana, há que exigir uma verdadeira qualidade de desenho pois queremos voltar a fazer cidade culturalmente fundamentada, humanizada e atraente, uma cidade que nos orgulhe e onde gostemos realmente de viver e conviver.



FIg. 05

Lembremos, agora, que o fazer cidade viva que apoie funcionalmente, estimule e proteja o peão é fazer cidade mais segura, seja nas questões ligadas à urgente negação das vias que são pistas de automóveis – e depois de o serem, então, marcam-se com sinais de controlo da velocidade e outras medidas de redução da mesma -, seja na criação de partes de cidade com continuidade urbana e de actividades, estruturadas por percursos agradáveis, memorizáveis, acompanhados por actividades e funções que vão polarizando as suas sequências de espaços.

E só assim teremos cidades que, física, funcional e ambientalmente, propiciem segurança urbana; uma segurança que mais do que sentida directamente, estará, naturalmente embebida num meio urbano que nos satisfaz e nos atrai e que, consequentemente, é factor de uso mais intenso do espaço público, sendo assim factor de convívio e de potencial de ajuda mútua – condições estas também fundamentais para a segurança urbana, mas antes disso, e na base disso, para a construção de uma verdadeira cidade do encontro e da comunidade.

Afinal, e tal como referiu Jane Jacobs (“Morte e vida das grandes cidades”, 1961), há que ter em conta que “a ordem pública não é mantida basicamente pela polícia... É mantida fundamentalmente pela rede intrincada de controlos e padrões de comportamento espontâneos… e o problema da insegurança não pode ser solucionado pela dispersão das pessoas... Numa rua movimentada consegue-se garantir segurança; numa rua deserta não…”

Que isto não seja entendido como a negação da importância dos serviços de segurança, mas estes mesmos serviços têm de avançar e têm avançado no sentido da acção de proximidade e do apoio específico e diário à qualidade de vida; temas a que voltaremos em próximos artigos e a propósito lembremos que já no referido artigo no Expresso se indicava que as “autoridades evitam a força ... Preferem estudar os bairros e criar vínculos.”



Fig. 06

É, sim, fundamental que as sábias e pioneiras palavras de Jane Jacobs sejam literalmente entendidas, como relevadoras da vital importância de uma cidade com continuidades urbanas e com regularidades urbanas “correntes”, como são (por exemplo) os enfiamentos e as sequências de ruas, as esquinas habitadas, as correntezas de edifícios com entradas bem ligadas à rua e bem assinaladas e apropriadas, as montras de lojas atraentes e regularmente distribuídas, as pracetas acolhedoras que integram pequenas esplanadas, as excelentes galerias comerciais que tornam os troços citadinos mais coesos, e, naturalmente, uma escala urbana que privilegie edifícios não muito altos nem muito grandes, capazes de proporcionarem muitos desses acontecimentos urbanos vitalizadores e muitas janelas de habitações não muito longe do que se passa na rua.



Fig. 07

Pelo contrário, se pensarmos na negação de muitos desses aspectos de forma e função urbana, deixamos de ter cidade com continuidades públicas, e até por vezes deixamos de ter ruas minimamente coesas, e deixamos de ter esquinas que marquem ritmos e funções de percursos, e assim, o pouco comércio que aí tentará sobreviver, pode ir morrendo, instalando-se uma espiral de desvitalização e de abandono do espaço de uso público; e aí, em “ruas” desertas, não é possível garantir segurança, e, mesmo antes disso, não é possível proporcionar conforto e gosto de habitar, porque antes da insegurança e em parte da sua génese está o desamor pelo espaço público e pelo sítio que se habita, afinal defendemos muito mais, ou só defendemos, aquilo de que gostamos, aquilo de que nos apropriamos.

Assim voltamos ao tema “nuclear” deste artigo: “o problema da habitação tornou-se o problema da cidade” e, muito provavelmente, o problema da insegurança no habitar tornou-se no problema da insegurança na cidade. Uma insegurança no habitar que radica também em condições de habitar e de vida urbana pouco humanizadas, pouco ligadas ao que a cidade pode e deve proporcionar de positivo e de diversidade funcional e cultural. E acresce, hoje em dia, a esta problemática que os principais problemas da cidade de hoje são os das megacidades, matéria pertinente que também fica para outros artigos, mas, sobre a qual, desde já, se sublinham as virtualidades das vizinhanças de proximidade e dos pequenos conjuntos urbanos como elementos de manutenção da escala humana e de dinamização estratégica e reforço da coesão, também, nas grandes urbes.



Fig. 08

Em toda esta matéria não devemos nunca considerar de forma menos atenta e adequada a questão real da insegurança, tal como ela é sentida, “na pele”, infelizmente, em tantos casos que, depois, surgem na comunicação social, por exemplo em artigos como o de Henrique Machado, no Correio da Manhã de 6 de Março de 2005, onde sob as palavras “Bairros de crime”, o jornalista refere que eles “fazem lembrar territórios sem lei, onde mandam os senhores do crime que trazem em pânico moradores que ainda resistem à marginalidade.”

E há, também, que reflectir sobre os parâmetros que baseiam a construção das listagens dos bairros “perigosos”, onde se conjugam, por exemplo (caso do estudo referido pelo artigo que saiu no Expresso), “condicionantes arquitectónicas e densidade populacional”, com “número de residentes com antecedentes criminais, número de casos de desordem pública, número de agressões a elementos policiais e número de casos de crimes praticados por residentes fora do bairro”. E há que reflcetir sobre estas matérias, porque se considera que, na base de tudo está, evidentemente, o desenho urbano e habitacional ou, frequentemente, o não-desenho – no sentido de concepção urbana integrada (neste caso desintegrada) – que marca tantos dormitórios suburbanos. E um não-desenho ao qual se associa uma não-cidade em termos sociais, porque socioculturalmente homogénea e desintegrada.

E aqui é já possível afirmar que seria muito acertado realizar um estudo prático deste universo da nossa vergonha urbana e para ele tentar e aplicar, de forma expedita, as melhores receitas para lhes aumentar urgentemente a qualidade de vida e naturalmente lhes reduzir a insegurança e a intolerância; e um tal estudo também ajudaria a não repetir e, provavelmente, a remediar os erros urbanísticos, como ainda vai acontecendo, embora menos frequentemente do que aconteceu, entre nós, designadamente, no período entre o início dos anos 70 e meados dos anos 80.

Há que dizer, de uma vez, que muitos conjuntos de edifícios onde muitas famílias e pessoas isoladas vivem, em periferias citadinas sem vida, não são mais do que “edificação habitacional”, não são nem cidades, nem partes de cidade, nem casas, nem partes de casas. São elementos humana, citadina e ambientalmente negativos com dimensão excessiva, são tipos de edifícios por vezes inteiramente inadequados a quem lá habita – quando são “tipos” de edifícios e não apenas construções com uso habitacional –, são espaços exteriores pouco acabados, mal acabados ou mesmo quase inexistentes em termos de funções e de forma pública, e são afinal sítios, que não são sítios, sem identidade e sem cidade, seja por falta de continuidade urbana, seja por falta de transportes públicos, seja por falta de desenho (concepção); seja, finalmente, por vezes, por falta de tudo isto, e, tantas vezes, numa má mistura física tornada realmente patológica, quando contém uma mistura social que nada tem da normal e rica diversidade sociocultural da cidade.

Lembram-se as impossíveis misturas habitacionais que só integram grupos socioculturais com diversos tipos de carências e de problemas de integração, como se uma verdadeira parte de cidade pudesse viver assim, truncada de parte do seu sangue. E se tudo aquilo que aqui não há é essencial para que a cidade se faça com habitantes e habitação, aqui não se faz cidade, e na ausência de cidade quem lá mora fecha-se em casa, o último reduto, enquanto as ruas “fazem lembrar territórios sem lei”.

Conclui-se, como se começou, com palavras de Luís Fernandez-Galiano: “A habitação ... é um problema urbano, da civitas ou da polis, isto quer dizer, de cidadania e político. Precisamos de mais arquitectura; mas acima de tudo precisamos de mais cidade.”



Fig. 09

Em próximos artigos desta série, estruturada pelo tema “o problema da habitação tornou-se o problema da cidade”, serão considerados, entre outros, os aspectos de urgência e de complexidade imbricados nestas matérias da negação social da “não-cidade” e da insegurança de que essa não-cidade é sítio próprio; e desde já se afirma que, evidentemente, o ambiente físico e arquitectónico é apenas um dos factores aqui em jogo, mas, no entanto, é em casas com paredes de “pedra e cal” e em ruas com correntezas de edifícios com janelas reais que se vive e se trabalha, e, portanto, será sempre do quadro físico que se terá de partir e ao quadro físico que se terá de chegar nesta urgente e pacífica batalha.

Ao contrário do que é já um hábito que se acarinha no Infohabitar, as imagens que ilustram o corpo deste artigo não foram especificamente identificadas, quer relativamente aos sítios “visitados”, quer relativamente aos respectivos autores projectistas. Pretendeu-se desta forma chamar mais a atenção para o fio de pensamentos no texto e menos para tais referências. No entanto escolheram-se, premeditadamente, apenas bons exemplos de habitação que faz cidade e de cidade viva e qualificada, portanto amada e tendencialmente segura, exemplos estes apurados em diversos bairros de Lisboa, entre os quais se destacam os sempre incontornáveis Alvalade e Campo de Ourique e os também sempre incontornáveis e mais recentes Tellheiras e o “velho” excelente Alto do Restelo da EPUL.



Fig. 10

Como se verá, em próximos artigos desta série sobre os tão imbricados problemas da habitação e da cidade, mais do que de uma tipologia habitacional e urbana específica, a qualidade do habitar uma cidade viva depende, numa primeira linha, da verdadeira e bem fundamentada qualificação do seu desenho, numa segunda linha, de preocupações específicas com aspectos de definição e responsabilização territorial e, em linhas paralelas, depende de se visar uma verdadeira parte de cidade convivial e com diversidade sociocultural, aspectos estes que, por sua vez, tem de interagir com a concepção da forma-função. Mas estes são aspectos que terão de ficar para próximos artigos.
Lisboa, Encarnação, 11 de Abril de 2006


Edição: José Baptista Coelho